20.9.04

Contágio (I)

Os dias gritavam por mais luz, naqueles espaços recônditos da cidade inferior. Lars estava com dores de dentes, Ilia não via senão o seu umbigo e eu estava farto de os aturar. Voltei-me para o outro lado disposto a esquecer os gemidos surdos e os murmúrios de drogado, mas o sono não regressou.
- Lars, grande monte de merda, devolve-me o swapper grande porco!
- Preciso mais dele do que tu! Tenho de ir para qualquer lado, não suporto mais esta dor... Tu estás cheio até aos olhos, não precisas do swapper para te ausentares.
- Acabem com isso, cretinos!
Voltei-me para Ilia.
- Lars tem razão e tu podes esperar. – levantei-me e sacudi a poeira da roupa. – Vou tentar obter algum dinheiro por aí. Não me esperem para nada.

Mesmo a luz atenuada pelas nuvens negras que não largavam o céu da cidade era demais para mim. Coloquei os óculos escuros e deixei-me envolver pela multidão compacta e pelos cheiros característicos da cidade imunda.
Entrei num beco para ver o que tinha obtido dos distraídos cidadãos: vários plasticards de nível inferior, algumas senhas de alimentação e setenta e três novos crons. Já podia matar a fome que começava a despertar.
Deixei o que não me interessava no lixo acumulado no beco e voltei à rua principal. Dirigi-me ao "Reflexo Condicionado" quase inconscientemente, meio arrastado pela multidão, mal olhando para os néons multicolores que chamavam clientes para mil e uma lojecas.
- Dá-me qualquer coisa que não custe mais de dez crons, Ned. – Ned era empregado de balcão do Reflexo desde sempre, usando a mesma roupa de sempre, com o mesmo esgar de má vontade que usara desde sempre – Mas qualquer coisa que se coma, não me dês aquilo que serves aos desconhecidos que passam por aqui.
- Vai-te lixar "Eveready".
O que me pôs à frente pouco depois convenceu-me do seu mau humor, mas pelo menos não se mexeu quando a espetei com o garfo.
Só reparei nela algum tempo depois. Observava-me com atenção e comecei a achar-me com sorte: ela era loura, baixa e parecia desfasada daquele ambiente. Quando me preparava para a abordar foi ela que se aproximou de mim.
- Olá.
- Viva. O que faz uma loura verdadeira numa espelunca destas, na pior parte da cidade?
- Existem partes boas?
Sorri-me antes de lhe responder:
- Não recusaria um apartamento em Sundrive...
- Nem você sabe no que se ia meter.
Parou de falar e olhou para mim com o mesmo olhar com que me inspeccionara. Percebi que a conversa de ocasião terminara e que aquilo talvez não fosse mais uma tentativa de engate.
- Ouça, quer ganhar algum dinheiro? – abri mais os olhos – Muito dinheiro?
- O suficiente para uma casa em Sundrive?
- Não abuse da sua sorte...
- Não me diga... Quer dizer que este momento é um momento de sorte para mim?
- Pode apostar a sua vida em como é.
- Está a deixar-me curioso... como é mesmo o seu nome?
- Lési.
- Só Lési?
- Por enquanto, e para si, só Lési. Que raio está você a comer?
- Dez crons de esterco...
- Venha daí. Vamos a um restaurante decente.
- Mas... e os meus dez crons?
- Eu pago isso, venha.
Em momentos vi-me dentro de um aerocarro particular, pairando sobre as ruas apinhadas de Newhope. Há quanto tempo não andava de aerocarro? Resolvi não pensar em nada e gozar a viagem. Enterrei-me mais no estofo macio e olhei para a sombra laranja do sol encerrada na sua prisão de nuvens.
Todas as cidades pareciam iguais: zona boa, para os ricos; zona má, para os pobres e os marginais. Eu era as duas coisas...
Ela mudara de ideias quanto a irmos a um restaurante comer e disse-me apenas que me daria alguma coisa quando chegássemos.
Dirigimo-nos para a zona alta da cidade e o nosso destino parecia ser o aglomerado de arranha-céus do centro comercial. Para alcançar o terraço ultrapassámos a primeira camada de nuvens, estabilizada a escassas centenas de metros de altura, e o sol ganhou um tom mais vivo.
- Em que idade é que sofreu a implantação?
- Não sei bem, acho que tinha uns cinco anos, talvez mais.
Ela virou o rosto para o vidro e ficou a contemplar o panorama que já devia ter visto por mil vezes.
- Que tipo de mulher traz um tipo das sarjetas para um trabalho misterioso sem sequer lhe perguntar o nome? – interroguei-a.
- O tipo de mulher que faz o que lhe ordenam. Para que interessa o seu nome, afinal?
- Gerd Makint, mais conhecido por "Eveready". O seu já sei que é Lési, apenas.
- Chegámos. Venha comigo.
Não notara a aterragem, de tão suave que fora. Automática sem dúvida; aliás, não vira qualquer piloto no veículo.
Os corredores brilhavam com a limpeza quase paranóica que apresentavam. Senti-me como um porco numa gaiola de ouro e apercebi-me do cheiro que exalava. Nunca o tinha notado, na cidade inferior, mas naquele ambiente estava tão deslocado como Lési o estivera no "Reflexo Condicionado".
- Por aqui. – indicou-me.
A sala era vasta e estava ricamente mobilada. Na parede de fundo estava o símbolo da HigherTec. Que podia querer uma corporação com aquela dimensão de um pária como eu?
- Sente-se por aí, eu já venho.
Afundei-me num sofá e esperei. Alguma coisa devia acontecer e entre as espeluncas onde passava o meu tempo e todo aquele luxo sabia o que preferia.

Naquela altura nem percebi muito bem o que eles pretendiam, mas o dinheiro que me ofereceram nem me deixou pensar duas vezes. Agora encontrava-me estendido numa cama de hospital depois da intervenção a que fora submetido. Tinham mexido na minha implantação: cortaram-me a pele da nuca e colocaram um novo chip de controlo do "Dispositivo de Interface Sensorial" dentro da minha cabeça. Passei a noite no hospital da HigherTec por precaução e agora iriam fazer testes ao novo dispositivo.
Quem entrou primeiro no quarto foi Lési:
- Sente-se bem, Makint?
- Não tenho razões para me sentir mal. A cama é fofa, a comida é boa e as enfermeiras são bonitas. E você, Lési, já arranjou um sobrenome? – ela não ligou à minha ironia e voltou-se para o homem que entrara com ela.
- Kurt, acho que podes fazer os testes ao senhor Makint.
Na verdade sentia-me mesmo bem. A não ser o pequeno ardor na nuca, tudo estava bem. Tinha mesmo tomado um banho monumental.
O homem avançou, sentou-se numa cadeira à cabeceira da minha cama e abriu uma pequena mala que continha um aparelhómetro qualquer.
- Vire-se de costas.

A vida é assim, e se um dia é passado no maior dos sonhos, no seguinte os pesadelos voltam reforçados.
Encontrava-me novamente na cidade inferior, depois dos testes terem sido concluídos. Não vira mais Lési desde o momento em que o homem tinha ligado a pequena ficha do aparelhómetro à minha nuca. Ela saíra do quarto e nunca mais a vira. Deram-me o dinheiro, ou antes, deram-me um plasticard de nível médio e despejaram-me de novo na cidade inferior. Habituara-me a dias mais claros...
Meti as mãos nos bolsos do blusão novo, subi a gola para me proteger da chuva fraca que caía e fui procurar Ilia e Lars. Talvez estivessem no Reflexo.

[...] Pelo contrário, Jim Hendle afirma na sua tese "Por um punhado de terra" que todos os acontecimentos que levaram ao confronto foram totalmente encenados por Arturo Tiaggil. A única verdade é que ninguém o sabe, e todas as décadas passadas apenas cobriram mais essa verdade. Os únicos factos passíveis de verificação foram os milhões de mortos e as destruições.
Teve coisas boas, essa última guerra? Acabou com o conceito de nação tradicional e as verdadeiras potências vieram ao de cima e assumiram o poder, para uma era de paz eterna... Na frase anterior, só o que está antes da vírgula é verdade: as grandes empresas assumiram o poder que já lhes pertencia, mas paz eterna?...
As guerras terminaram por uma única razão: deixaram de dar lucro. A guerra abriu falência...
Acreditem-me, não estou a ser cínico. [...]

"Crónica das Guerras do Mundo"
Adrian S. Molnar


Não sou um viciado, mas toda a gente necessita de ajuda de vez em quando e eu não era excepção. Fui buscar o swapper às coisas do Ilia. Não lhe pertencia, de resto. Era de todos. Fora roubado da loja de Deng Fabrizi, um ítalo-chinês que também funcionava como receptador de coisas quentes.
Introduzi a pequena ficha na nuca e programei o swapper para aquilo que desejava naquele momento: estar com Lési-sem-sobrenome algures num sítio limpo. Não seria real, mas só me daria conta disso depois da sessão acabada. O sonho é preferível à realidade sombria...
O swapper tinha algum problema, não arrancara logo. A luz vermelha de avaria acendera-se para se apagar logo a seguir. Depois apareceu Lési e eu não pensei mais nisso.